Tuesday, July 27, 2010

Post Mortem – II


O tiro ecoou mesmo em meio aos gritos, feitiços e lamuriares. Aquele som cresceu qual rugido de Caronte em busca das almas descarnadas. Por um momento tudo silenciou e Jean mais uma vez fraquejou.
Seu pranto cresceu na obscura vontade e seus lábios moviam em implorares.
Era o amargo fim de uma vida promissora, da inocência perdida de sonhos e desejares. Seus olhos lacrimosos pediam mais um fim, pois Alice não estava ali para impedi-lo. Sim, ele havia disparado sua arma, havia trazido a justiça tão amada, tão odiada, tão amargurada.
Como pudera deixar seu ódio crescer? Como fora fácil obedecer. Destinos da vida que ele tão bem assumira, mas que também negara. Ainda podia bem escutá-la.
Frágil brilho prateado que se erguia. Suas lágrimas agora de nada valiam. Ela partira sem nem ao menos dizer adeus, pois suas últimas palavras foram para chamá-lo de tolo.
— Como fui tolo...

Murmurou em desgosto, compreendendo a amargura que sempre a assolara. Via agora todos os mortos caídos e aqueles olhos que um dia o julgariam.

— Como fui tolo...
Sua mão tremia, acariciando o que trouxera o grito de Caronte, tal qual uma Bean-Sidhe faria ao anunciar sua morte.

— MAAALDIIITOOOO!!!

Gritou em afronta, trazendo a presença funesta à sua boca.
Fechando os olhos esperou e praguejou, ao perceber que o fim não o alcançou.

— Se eu fosse a Alice, com certeza o mataria.

Não podia culpá-lo pela dor que sentia, mas Jean precisava dar mais uma chance à sua vida.
Puxei os cabelos do príncipe desolado e ergui sua cabeça para o cenário.
— Você também foi enganado.
Mais adiante ele podia ver o corpo da feiticeira sendo arrastado. Não por anjos, tão pouco por demônios, mas por criaturas de contos de fadas.
— Finalmente você rompeu seus laços, meu caro Príncipe encantado...
Sorri para o rapaz desolado e observei Togarini ali parado...
Acolhia o corpo de Alice em seus braços, recebendo o coração inquisidor em suas mãos.
— É o fim? – perguntou-me O’Toole ao ver os dois partindo.
E com uma pontada de saudades que jamais deixei transparecer em meus olhos, murmurei.
— Nunca se sabe...

Tuesday, July 13, 2010

Post Mortem - I

Ela surgiu do nada, tão rápida quanto uma sombra a se mover. Alice estava cansada, exausta ao ponto que nem seu sexto sentido poderia alertá-la. Meu coração parou quando vi seus olhos se arregalarem, seu rebuscar do ar sendo curto e as mãos dela vacilarem. Vi quando seu corpo teve um último espasmo, enquanto seu coração era arrancado e aqueles olhos verdes brilharam incrédulos e em certo ponto aliviados.
Não, eu não podia crer que o coração de Alice havia sido arrancado com tanta facilidade pelas mãos de uma mulher ruiva em vestes medievais azuis. Muito menos podia crer que naquele momento agi por impulso, disparando minha arma, gritando em dor pela morte de minha parceira.
Sabia que se fossem ferimentos graves ainda teríamos como trazê-la de volta. Thorn sempre conseguiu, mesmo tendo dito que estava cada vez mais difícil. Ainda por impulso invoquei a mão direita de Deus, tendo a desagradável surpresa de que ele não me agraciaria com sua presença. Abandonara-me no momento em que mais precisei trazer justiça acima de tudo. Gritei em rebeldia, amaldiçoei o arcanjo que me acompanhou por tantos anos e que agora me recusava a morte da feiticeira. A verdadeira algoz de Angela e Alice.
Thorn parecia mais lúcido, trazia todos aqueles mortos de volta à vida, ambos evocavam magias, enquanto eu tinha apenas minha arma e algumas poucas magias em minha fútil sabedoria.
Quantas vezes Alice me disse que eu precisava ousar, que precisava aprender mais magias em meu dia a dia? Sim, eu tinha algumas magias que ela não possuía, mas de que me adiantariam se tais magias eram de cura, se podiam apenas remendar alguns ferimentos básicos. O que eu poderia fazer diante de uma pessoa que jazia caída, com o peito aberto e seu coração arrancado. Sentia-me inútil, um abandonado. Não... Ela não podia ter me abandonado. Uma horda de mortos avançavam ferozes contra feiticeira, arrancavam o coração da mão dela enquanto ela tentava se defender e atingir o outro feiticeiro.
Sim... Agora eu compreendia porque Alice tanto respeitava Thorn...
Ele erguia os mortos como escudo para seu corpo, como armas contra a feiticeira que conhecia as antigas magias, mas que não conhecia o poder da necromancia. Ela mal tinha tempo de evocar Raios ou de escapar das garras dos mortos que arranhavam seu corpo, que a seguravam cada vez mais. Deixando-a cada vez mais indefensável e assombrei... Como poderia não me assombrar quando pude ver aquelas asas crescerem, aquela aura se espalhar. Como não poderia chorar de dor, de medo e de tudo que me assolava, quando finalmente pude ver o arcanjo que eu mais odiava.
Não... Ele não assumia as formas pavorosas de tantos demônios que enfrentei. Ele crescia como uma sombra que engolia e varria toda aquela área que nos encontrávamos... Ele era belo ao ponto de desejarmos que consumisse nossa alma em seu rosto sereno e pele pálida, naqueles cabelos negros que esvoaçavam, mesclando com suas asas negras e nos abraçava congelando a nossa alma, arrancando-a de nossa carne mesclando à sua alma. Por um momento senti paz, pois não vi Alice sendo arrastada para os confins do Inferno. Vi Togarini batalhando furiosamente contra Geburah que se encontrava no corpo da Morgan. Meu ódio crescia, minha alma tremia, éramos apenas marionetes, tais quais Alice dizia que éramos em todos os dias que eu a ouvi murmurar com desgosto em sua vida.
Mesmo estando inerte, talvez tão morto quanto minha parceira, eu ainda podia presenciar o que ela não presenciava. Era um espetáculo sem par, ver todas aquelas almas se juntando, sendo manipuladas pelo Arcanjo da Morte. Os Anjos batalhavam, o prédio ameaçava desabar, os mortos avançavam... O Viking se aproximava da feiticeira de maneira implacável...
— Inquisidor!
Ouvi aquele grito, aquele comando que sempre me acompanhou. Senti as correias se apertarem sobre meu corpo me puxando para a batalha, minha alma voltando para o meu corpo e minha mão erguendo em uma direção.
— Mate-o!
Meus olhos estavam embaçados, minha mão tremia. Meu coração apertava. Ele estava de costas, iria alcançá-la. O Arcanjo da Morte ganharia se eu não fizesse nada. Alice morreu por confiar nele. Poderia estar viva... Se não fosse por ele... Se desde o início tivesse seguido...
— Geburah...
Disparei minha arma, pois a Justiça deveria prevalecer.