Tuesday, August 24, 2010

Post Mortem – III

Ela estava ali, pálida em meus braços, quando recebi seu coração em minhas mãos. Geburah urrou a morte da feiticeira, jurando pragas contra o irlandês, mas nada mais podia ser feito.
Há muito vejo as artimanhas do Arcanjo da Justiça no arrebanhar de humanos que estão ligados à morte, vendo seus traiçoeiros movimentos para retirar o direito daqueles que possuem as almas dos humanos por direito.
Tínhamos os destinos de cada um traçado, sem interferirmos no trabalho de nossos irmãos. Lúcifer já havia se renegado e Mikhael cantou as glórias de tê-lo expulsado, mas os mais antigos que participaram da primeira batalha sabiam que os cantos eram cantados de maneira errada.
Não devo mergulhar em lembranças passadas, pois cá está Alice serena em meus braços.
Alice precisava romper seus próprios laços, não bastando isso precisava que Geburah traísse os acordos que ambos possuíam. Minha avatar não desejava apenas sua liberdade e quão belo foi seu movimento ao fazer o irlandês voltar às suas raízes.
Christine havia traído suas raízes, rompido os juramentos e lançado seu conhecimento ao julgamento dos que abominam a magia. Aprisionou em códigos de honra uma gárgula que teria cuidado da prole sem que fosse assim obrigada, preocupou-se apenas com sua linhagem, condenando à morte seus antepassados.
Mas tudo isso é passado e posso escutar o som de corações partidos. Um se encontra desolado, pois perdera o rumo que deve tomar, lamentando-se pelos dias que se seguirão sem esses olhos dourados que se encontram fechados. Outro chora em sua alma, pois havia se prometido nunca mais se apaixonar. Compreendo o medo de meu outro avatar, pois a perda para ele é muito mais significativa do que ele se permite julgar.
Talvez a dor que o viking sinta, seja a que fere mais a minha maldita alma fria.
— Foram seus olhos que pararam as nossas mãos naquele dia. – Foi o que eu disse uma vez para Alice, mas creio que tal frase nunca tenha sido compreendida pela mulher de alma ferina. Ela trespassou minha alma...
— Em seus olhos... Vi que sua alma jamais seria subjugada... Por mais que todos nós tentássemos, nós teríamos apenas aquilo que você nos permitiria... Ter. – Murmurei deitando-a no limbo, onde o tempo não transcorria.
Recostei meu semblante ao dela, franzindo o cenho em minhas decisões.
Apenas Lúcifer criava mundos do nada, apenas ele voltaria no tempo para criar novas linhas temporais, mas nem mesmo eu desejo engrandecer-me perante o primeiro, então dou à Alice meu último beijo.

Tuesday, July 27, 2010

Post Mortem – II


O tiro ecoou mesmo em meio aos gritos, feitiços e lamuriares. Aquele som cresceu qual rugido de Caronte em busca das almas descarnadas. Por um momento tudo silenciou e Jean mais uma vez fraquejou.
Seu pranto cresceu na obscura vontade e seus lábios moviam em implorares.
Era o amargo fim de uma vida promissora, da inocência perdida de sonhos e desejares. Seus olhos lacrimosos pediam mais um fim, pois Alice não estava ali para impedi-lo. Sim, ele havia disparado sua arma, havia trazido a justiça tão amada, tão odiada, tão amargurada.
Como pudera deixar seu ódio crescer? Como fora fácil obedecer. Destinos da vida que ele tão bem assumira, mas que também negara. Ainda podia bem escutá-la.
Frágil brilho prateado que se erguia. Suas lágrimas agora de nada valiam. Ela partira sem nem ao menos dizer adeus, pois suas últimas palavras foram para chamá-lo de tolo.
— Como fui tolo...

Murmurou em desgosto, compreendendo a amargura que sempre a assolara. Via agora todos os mortos caídos e aqueles olhos que um dia o julgariam.

— Como fui tolo...
Sua mão tremia, acariciando o que trouxera o grito de Caronte, tal qual uma Bean-Sidhe faria ao anunciar sua morte.

— MAAALDIIITOOOO!!!

Gritou em afronta, trazendo a presença funesta à sua boca.
Fechando os olhos esperou e praguejou, ao perceber que o fim não o alcançou.

— Se eu fosse a Alice, com certeza o mataria.

Não podia culpá-lo pela dor que sentia, mas Jean precisava dar mais uma chance à sua vida.
Puxei os cabelos do príncipe desolado e ergui sua cabeça para o cenário.
— Você também foi enganado.
Mais adiante ele podia ver o corpo da feiticeira sendo arrastado. Não por anjos, tão pouco por demônios, mas por criaturas de contos de fadas.
— Finalmente você rompeu seus laços, meu caro Príncipe encantado...
Sorri para o rapaz desolado e observei Togarini ali parado...
Acolhia o corpo de Alice em seus braços, recebendo o coração inquisidor em suas mãos.
— É o fim? – perguntou-me O’Toole ao ver os dois partindo.
E com uma pontada de saudades que jamais deixei transparecer em meus olhos, murmurei.
— Nunca se sabe...

Tuesday, July 13, 2010

Post Mortem - I

Ela surgiu do nada, tão rápida quanto uma sombra a se mover. Alice estava cansada, exausta ao ponto que nem seu sexto sentido poderia alertá-la. Meu coração parou quando vi seus olhos se arregalarem, seu rebuscar do ar sendo curto e as mãos dela vacilarem. Vi quando seu corpo teve um último espasmo, enquanto seu coração era arrancado e aqueles olhos verdes brilharam incrédulos e em certo ponto aliviados.
Não, eu não podia crer que o coração de Alice havia sido arrancado com tanta facilidade pelas mãos de uma mulher ruiva em vestes medievais azuis. Muito menos podia crer que naquele momento agi por impulso, disparando minha arma, gritando em dor pela morte de minha parceira.
Sabia que se fossem ferimentos graves ainda teríamos como trazê-la de volta. Thorn sempre conseguiu, mesmo tendo dito que estava cada vez mais difícil. Ainda por impulso invoquei a mão direita de Deus, tendo a desagradável surpresa de que ele não me agraciaria com sua presença. Abandonara-me no momento em que mais precisei trazer justiça acima de tudo. Gritei em rebeldia, amaldiçoei o arcanjo que me acompanhou por tantos anos e que agora me recusava a morte da feiticeira. A verdadeira algoz de Angela e Alice.
Thorn parecia mais lúcido, trazia todos aqueles mortos de volta à vida, ambos evocavam magias, enquanto eu tinha apenas minha arma e algumas poucas magias em minha fútil sabedoria.
Quantas vezes Alice me disse que eu precisava ousar, que precisava aprender mais magias em meu dia a dia? Sim, eu tinha algumas magias que ela não possuía, mas de que me adiantariam se tais magias eram de cura, se podiam apenas remendar alguns ferimentos básicos. O que eu poderia fazer diante de uma pessoa que jazia caída, com o peito aberto e seu coração arrancado. Sentia-me inútil, um abandonado. Não... Ela não podia ter me abandonado. Uma horda de mortos avançavam ferozes contra feiticeira, arrancavam o coração da mão dela enquanto ela tentava se defender e atingir o outro feiticeiro.
Sim... Agora eu compreendia porque Alice tanto respeitava Thorn...
Ele erguia os mortos como escudo para seu corpo, como armas contra a feiticeira que conhecia as antigas magias, mas que não conhecia o poder da necromancia. Ela mal tinha tempo de evocar Raios ou de escapar das garras dos mortos que arranhavam seu corpo, que a seguravam cada vez mais. Deixando-a cada vez mais indefensável e assombrei... Como poderia não me assombrar quando pude ver aquelas asas crescerem, aquela aura se espalhar. Como não poderia chorar de dor, de medo e de tudo que me assolava, quando finalmente pude ver o arcanjo que eu mais odiava.
Não... Ele não assumia as formas pavorosas de tantos demônios que enfrentei. Ele crescia como uma sombra que engolia e varria toda aquela área que nos encontrávamos... Ele era belo ao ponto de desejarmos que consumisse nossa alma em seu rosto sereno e pele pálida, naqueles cabelos negros que esvoaçavam, mesclando com suas asas negras e nos abraçava congelando a nossa alma, arrancando-a de nossa carne mesclando à sua alma. Por um momento senti paz, pois não vi Alice sendo arrastada para os confins do Inferno. Vi Togarini batalhando furiosamente contra Geburah que se encontrava no corpo da Morgan. Meu ódio crescia, minha alma tremia, éramos apenas marionetes, tais quais Alice dizia que éramos em todos os dias que eu a ouvi murmurar com desgosto em sua vida.
Mesmo estando inerte, talvez tão morto quanto minha parceira, eu ainda podia presenciar o que ela não presenciava. Era um espetáculo sem par, ver todas aquelas almas se juntando, sendo manipuladas pelo Arcanjo da Morte. Os Anjos batalhavam, o prédio ameaçava desabar, os mortos avançavam... O Viking se aproximava da feiticeira de maneira implacável...
— Inquisidor!
Ouvi aquele grito, aquele comando que sempre me acompanhou. Senti as correias se apertarem sobre meu corpo me puxando para a batalha, minha alma voltando para o meu corpo e minha mão erguendo em uma direção.
— Mate-o!
Meus olhos estavam embaçados, minha mão tremia. Meu coração apertava. Ele estava de costas, iria alcançá-la. O Arcanjo da Morte ganharia se eu não fizesse nada. Alice morreu por confiar nele. Poderia estar viva... Se não fosse por ele... Se desde o início tivesse seguido...
— Geburah...
Disparei minha arma, pois a Justiça deveria prevalecer.

Wednesday, February 17, 2010

Da Morte.

Ver aquela mulher, sentada em seu trono de mortos, coberta com sangue e seus olhos vitrificados, despertou um medo que até então eu desconhecia.
Já havia a confrontado várias vezes. Em algumas, ela feriu-me deixando marcas que carrego, em outras, pude ver a alma da humana abandonar aquele corpo fraco e inútil, mas o que me estremecia sempre era sentir aquele par de asas resvalando em meu corpo e se fechando sobre aquela mortal.
O frio enrijecia meus músculos, meu coração descompassava em desespero e por muitas vezes, o retorno da alma inquiridora àquele corpo que se erguia mais uma vez, era mais aterrador quando minha alma era trespassada por aquele olhar.
Por meses ela me ignorou, após meu desafio. Por meses vi a inquisidora eliminar as raças das trevas, os humanos iluminados e até mesmo os magos.
Ela apertava o cerco ao facilitar a minha vida, eliminando os McArthur, mas zombava ao que eliminava os Morgan também.
Mortes atrás de mortes que pareciam deleitá-la a cada corpo estripado, a cada sangue derramado e a cada olhar suplicante do rapaz que o viking chamava de cavaleiro ou de príncipe encantado.
Viking este que também tinha uma aura tão aterrorizante quanto ao da investigadora, mas agora, até mesmo ele parecia se silenciar diante daquela bestialidade que crescia na mulher que ele protegia como protejo os meus.
Christine ordenava que eu matasse Alice, dizia que eu havia negligenciado meus deveres não protegendo a linhagem dela. Não encontrei minha morte, como temi logo no início de minhas obrigações. Fiz o máximo que podia, chegando o mais perto possível da morte que incorporara no corpo de uma mulher, mas... Algo dentro de mim revolvia, instigava, aumentava a besta sedenta por sangue e morte...
Foi quando ela me fez perceber que sabia que eu estava ali o tempo inteiro.
— Saiam! – Murmurou a humana para seus amigos, ao olhar fixamente para os meus olhos, enquanto eu me escondia nas sombras daquele lugar.
— Alice... Você precisa parar... Deixe-nos ajudá-la... – Murmurou o cavaleiro e senti pena do pobre rapaz em certo ponto. Era claro que ele amava aquela mulher, que seria capaz de dar a própria vida para salvá-la.
— Não há mais nada que possamos fazer, O’Toole. Venha. – O viking respondeu de modo sombrio, tocando o ombro do rapaz, deixando claro que era chegada a hora.
— Não! Sempre podemos fazer algo... Como você pode aceitar o que seu Arcanjo está prestes a fazer?
Era claro que o rapaz se referia há algo que eu sentia em todos os meus encontros com a inquisidora e ele me fez lembrar séculos atrás... De certo jovem que também seria capaz de enorme sacrifício.
— Saia seu tolo! – A voz chegara tão fria e cortante aos meus ouvidos que meus devaneios foram cortados rapidamente.
As mãos da inquiridora estavam flamejantes e seus passos mostravam-se ameaçadores, mesmo que lentos. Meu coração se rebelava, com a ameaça presente que ela fazia a quem sempre a protegeu e a amou.
Ela o mataria, mas não era mais ela... Era aquela presença...
— Mate-a... Antes que ela o mate.

Novamente aquela voz. Novamente aquela ordem... A besta dentro de mim se rebelava contra aquela ordem.
— ALICE! VOCÊ É MAIS FORTE QUE ELE!
Havia desespero naquela voz inocente, apaixonada... Desesperada...
Meus olhos se abriram, viam quando as chamas começaram a consumir alguns corpos, sendo que outros dilacerados erguiam-se ou arrastavam-se na direção dos homens que ali se encontravam.
O Viking apenas arrastava o rapaz para trás.
Não! Eu não podia deixar que ela os matasse... Nem mesmo o Viking que parecia compartilhar aquela mesma presença, muito menos o cavaleiro. Rugi ao libertar completamente a fera dentro de mim, mergulhando em direção aos mortos que se levantaram. Abri caminho para que os homens fugissem da mulher e me surpreendi quando vi os olhos do cavaleiro se arregalar...
A dor não era tamanha... O frio não era tão assustador... Como pude ser tão descuidada?

— Ninguém foge dos braços da morte.
Torci a espada, escutando aquele baixo gemer. Pendia minha cabeça levemente, observando as mãos trêmulas que tocavam a lâmina de ferro que aumentava o ferimento, impedindo o regeneramento da gárgula agir. Percebi aquele olhar implorando perdão voltado para O’Toole e Thorn e não fui sutil ao arrancar a lâmina do corpo da minha vítima e decapitá-la.
Cai de joelhos, ao lado da gárgula, respirando com um pouco de dificuldade. Era a primeira vez que eu invocava magias tão poderosas, que erguia tantos mortos e causava um incêndio tão forte quanto aquele sem ajuda extra dos arcanjos. O’Toole estava estarrecido e Thorn mal teve tempo...
— ALIC...
Não sei bem o que me atingiu, mas também foi tão surpreendente quanto minha espada no corpo da gárgula.
Escutei tiros, invocações, depois não escutei mais nada...
Havia apenas o silêncio
E a escuridão.